Resenha de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

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A vida invisível de Eurídice Gusmão é o romance de estreia de Martha Batalha. E preciso dizer: é até difícil acreditar nisso! 

A escrita de Martha é tão envolvente e a narrativa tão bem atada que parece que estamos lendo a obra de uma autora com dezenas de títulos publicados. As cento e poucas páginas podem ser devoradas em questão de horas.

A capa do livro já dá pistas daquilo que vamos encontrar no seu interior…

Uma mulher sem rosto, porque é invisível… ou uma mulher sem rosto, porque tem muitas faces?

Enredo de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

Como o próprio nome já deixa claro, a história retrata a vida de Eurídice Gusmão (tanto a visível quanto a invisível) e de sua irmã, Guida Gusmão. A vida de Eurídice vira de cabeça para baixo quando Guida foge de casa sem deixar rastros. 

Vendo o sofrimento dos pais, ela promete a si mesma que nunca mais iria desapontá-los, seria a filha perfeita. 

Isso por si só já seria um pouco duro para uma pessoa normal. Mas Eurídice Gusmão não era uma pessoa normal. Ela era brilhante. E no Rio de Janeiro, na década de 40, ser uma mulher brilhante podia ser bem desafiador…

Mas Eurídice estava disposta a ignorar “a parte de Eurídice que não queria que Eurídice fosse Eurídice”, ou seja, a parte que dizia para ela ser uma mulher “bela, recatada e do lar”. Bom, isso até o sumiço da sua irmã, quando ela deixou essa parte vencer e decidiu se enquadrar nos padrões da época. 

A partir daí ela para de enfrentar os pais pelos seus sonhos, faz tudo o que eles pedem e, depois de alguns anos, se casa com Antenor Campelo. 

A vida de Guida também foi muito diferente do que ela imaginou que seria: fugiu com seu namorado para se casar e o livrar da sua família insuportável. Mas, depois de pouco tempo, houve outra fuga. Dessa vez, apenas de Marcos, que deixa ela para trás, grávida.

Personalidades diferentes

É muito interessante ver que as duas irmãs, com personalidades tão diferentes, acabam tendo que aceitar o mesmo destino: se conformar com uma realidade limitada por serem mulheres.

Ver Eurídice em guerra com a “parte de Eurídice que não queria que Eurídice fosse Eurídice” durante toda sua vida é angustiante. Dá vontade de entrar no livro e dizer para ela fazer o que bem entender, porque ela é genial o suficiente para isso. 

A verdade é que, se assim como eu você está acostumada a ler histórias sobre mulheres que quebram padrões, desafiam o patriarcado e criam revoluções… A vida invisível de Eurídice Gusmão vai te surpreender.

Isso porque o primeiro ato de rebeldia de Eurídice durante seu casamento foi escrever receitas. Mas não se engane, porque essas receitas não deixam de ser uma revolução a sua própria maneira. 

São muitos os projetos que ela inicia e precisa deixar de lado: a flauta quando criança, o livro de receitas, a costura e venda de vestidos…

E também são muitos os julgamentos que ela recebe em cada um deles: dos pais, que achavam que a flauta servia apenas como um meio de conquistar um bom pretendente; do marido, que queria a mulher apenas cuidando da casa e dos filhos; e até mesmo das vizinhas. 

Por que ler A vida invisível de Eurídice Gusmão

Mas o mais impressionante em A vida invisível de Eurídice Gusmão é que quase todos os personagens periféricos têm suas histórias contadas. E isso nos ajuda a entender as condições que os levaram a ser quem são. O que contribui ainda mais para a naturalização da série de injustiças sociais que vemos no livro.

Zélia, a vizinha fofoqueira, não descansa enquanto não vê o circo pegando fogo? Faz sentido. Ver a infelicidade de todos a sua volta (mesmo que inventada) a ajuda a aliviar um pouco a sua. 

O Antenor invisibiliza sua mulher, a humilha e acha que ela só serve para limpar e cuidar dos filhos?  Faz sentido. Afinal, a própria mãe dele se suicidou por não se encaixar na vida de “do lar” e sonhar ser poetisa. 

Até mesmo quando os personagens mais mesquinhos e cruéis cometem atrocidades só conseguimos suspirar e soltar um “já era de se esperar”.

Sozinha e grávida

Como quando Marcos larga Guida sozinha e grávida para voltar para a casa da família… 

Já era de se esperar, foi criado em berço de ouro e nunca precisou enfrentar adversidades sem dinheiro no bolso que pudesse resolvê-las.

Ou quando Guida vai atrás do pai, grávida, querendo voltar para casa e ele a manda embora…

Já era de se esperar. Ele foi criado para esconder seus sentimentos e preservar o orgulho acima de tudo.

Tudo isso, somado com a escrita leve de Martha e a quantidade gigantesca de eventos sexistas, nos faz banalizar essa opressão contra a mulher. E não era mesmo banal nos anos 40/50 (e até hoje)?

Mas acima de tudo, nos faz perceber que cada um de nós tem uma parte invisível. Uma parte que escondemos bem fundo e que nos faz magoarmos a nós mesmos e as pessoas ao nosso redor nesse processo.

Por isso, uma das coisas que não vai sair da sua cabeça durante a leitura de A vida invisível de Eurídice Gusmão é o pensamento “terapia resolvia isso”. E, acredite, você vai estar certo. 

Cada personagem está tão preocupado com a própria infelicidade e traumas que acabam invisibilizando e causando a infelicidade de vários outros. 

Eurídice, por exemplo, torna a vida da sua empregada, Das Dores, um inferno com suas eternas cobranças já que não tem mais o que fazer e precisa preencher o vazio dentro de si. 

Vizinha fofoqueira

É o caso de Zélia também, a vizinha fofoqueira que todos já tivemos. Aquela que quando conta aumenta MILHARES de pontos. Ela não quer ser a única infeliz com a própria vida. Por isso, faz de tudo para apontar a desgraça na vida dos outros.

Bom, não é nenhum segredo que A vida invisível de Eurídice Gusmão foi adaptado para o cinema. O filme, que se chama apenas A vida invisível, além de premiado, tem a incrível Fernanda Montenegro no elenco. 

Mas preciso dizer que nem mesmo isso foi suficiente para me fazer assistir. O livro conseguiu me prender de tal forma e deixar uma impressão tão forte que, para mim, manter essa impressão intacta é importante. 

Até porque, sabemos que sempre há mudanças nas adaptações cinematográficas, por melhores que sejam. Nas palavras da própria Martha, enquanto o livro é uma tragicomédia, o filme é um melodrama.

Conclusão

E o que torna a obra tão incrível, no meu ponto de vista, é justamente o poder de nos fazer dar risada até em meio a tristeza. 

Caso ainda não tenha ficado claro até agora, deixe-me dizer: A vida Invisível de Eurídice Gusmão é um livro que todos deveriam ler, apreciar, reler e guardá-lo em um cantinho especial.

No prefácio, Martha Batalha diz que essa história poderia ser sobre nossas avós. E ela tem razão. 

Quando tiver um tempinho, olhe para essas mulheres da sua família e você verá o mesmo que eu quando fiz isso com as minhas: um amontoado de coisas que poderiam ter sido. Mas que, por conta de uma sociedade conservadora, não foram.

Por isso, a dica que deixo por fim para as mulheres é: se puderem, sejam. Façam isso por todas aquelas que não puderam.


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