Resenha de Ulysses, de James Joyce

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Resenha de Ulysses, por João Matheus

Comece a conhecer a resenha de Ulysses através de uma citação do autor:

“A arte tem que nos revelar ideias, essências espirituais amorfas. A suprema questão para uma obra de arte é quão profunda é a vida de onde ela brota.”

James Joyce

Estou apresentando ao leitor a resenha de Ulysses, obra do irlandês James Joyce (1882-1941), um dos primeiros calhamaços que li, mil páginas que pareciam o dobro para um jovem como eu, mas, fiz-me um desafio de terminar aquela obra imensa… e terminei e recomecei imediatamente a ler novamente aquelas mil páginas. Assim, devo a Ulysses a minha entrada na leitura dos clássicos da literatura mundial.

Parece ser ponto comum para todos que Ulysses é um livro extremamente difícil para ser ler, caso você seja um marujo de águas doces. É muito comum encontrar pessoas que desistem de sua leitura por tamanha dificuldade, tanto de ler quanto de interpretar, e o próprio Joyce brincava que “colocara nele tantos enigmas e quebra-cabeças que irão manter os professores ocupados durante séculos discutindo sobre o que eu quis dizer”, podemos dizer que o irlandês acertou ferozmente na sua “profecia”.

James Joyce é excêntrico, me divirto ao ver seu famoso tapa-olho, e isso desenha-se em seu livro. Ulysses, escrito entre 1914 e 1921, se propõe a testar os limites do leitor clássico. Inicialmente planejado como mais um dos contos do seu livro Dublinenses (1914). A ideia começou a tomar forma em meados de 1914, porém, devido a problemas de censura, autoexílios constantes por dívidas de bebida e óperas, a obra só foi finalizada em 1921, ainda assim tendo vários problemas com a censura americana e britânica.

A trilogia

É o segundo livro da trilogia construída por Joyce que começa com a obra de teor auto biográfico Retrato do Artista quando Jovem (1916) e termina com o terceiro romance Finnegans Wake (1939). Os três tem em comum a participação de Stephan Dedalus. 

Joyce brinca com as palavras e estruturas textuais como uma criança brinca com os brinquedos. Ele arrojadamente reinventa, destrói, reconstrói sua narrativa ao prazer da estética, sentimo-nos dentro de um mar revolto onde as estrelas mantêm a beleza daquela situação adversa. Em um momento estamos presos a um fluxo de consciência, inovador para a época, do personagem onde atitudes se confundem com pensamentos no momento que almoça ou excreta, e algumas páginas depois, estamos dentro de uma estrutura de jornal onde os personagens fofocam como se estivessem a montar as manchetes para, no final, entrarmos em um fluxo intenso de palavras eufóricas que atropelam qualquer regra textual, afinal, quem precisa de vírgulas, pontos de continuação ou exclamações quando estamos em plena euforia? Joyce faz de Ulysses seu campo de experimentação, sua área de teste para o vigorante movimento modernista que avança pela Europa e os Estados Unidos

James Joyce é considerado um dos maiores escritores do século XX.

Enredo de Ulysses

“Certo, Ulysses é fora do comum, mas do que se trata? Porque devo me interessar por um homem que usa tapa-olho?”

Joyce nunca escondeu que seu herói favorito era o malandro do Odisseu, ou Ulisses para os romanos (os romanos, como sempre, detestavam tudo aquilo que não tivesse regras, logo, Odisseu não era o mais feliz para o olhar romano). Rei da ilha de Ítaca que se fingiu de louco para tentar não lutar em Troia, perspicaz para compreender como derrubar as muralhas da cidade usando do famoso cavalo de Troia, ardiloso ao inventar o personagem Nemo (Ninguém) para enganar o ciclope Polifemo, e fingiu ser um mendigo para descobrir e matar os conspiradores que tentavam se casar com sua mulher Penélope, eis o favorito de Joyce.

Odisseu, um homem comum

O escritor irlandês admirava que Odisseu não possuía nenhuma grande habilidade, não era forte como Hércules ou poderoso como Aquiles. Logo, todas as adversidades eram derrubadas usando-se da própria inteligência e perspicácia. Decerto que isso fazia Odisseu ser admirado. Um homem contra deuses e monstros infinitamente superiores, armado apenas com o intelecto.

Outra grande inspiração de Joyce é o italiano Dante Alighieri. Se a Divina Comédia é a caminhada de Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, Ulysses é a caminhada de seus protagonistas pela infernal, monótona e degradada Dublin. Dessa maneira, o ideal e o real colidem-se entre as entranhas de becos, praias, prédios e bordeis de uma Dublin do século XX.  

O heroico e perspicaz Odisseu fez a infância de Joyce que recriou um novo Ulisses, o Leopold Bloom, homem comum que trabalha como um agente publicitário e judeu. Ao invés de dezoito anos no mar, são dezoito horas nas ruas de Dublin divididas em dezoito capítulos.

Não temos monstros, temos homens invejosos, mentirosos e racistas. A Penélope de Homero aguentou mais de vinte anos sem ver seu marido, mas a Penélope de Joyce, Marion Bloom, cantora de ópera, — a mais brilhante das personagens — já o trai com o melhor amigo Blazes Boylan. Temos também outras alegorias como o inventor do labirinto Dedalus, que aqui se torna Stephen Dedalus, jovem escritor melancólico — alter-ego de Joyce — atormentado pela morte da mãe e pelo amigo Buck Mulligan. 

Os protagonistas

Os nossos protagonistas Leopold Bloom e Stephen Dedalus serão marcados pelas suas assombrações, Marion e Boylan, são os nossos príncipes trágicos shakespearianos. Ambos caminham pelas estradas e ruas de Dublin inconscientemente fugindo dos seus nêmesis e defrontando-se com os mais diversos monstros. Joyce marca suas personalidades pela maneira que escreve.

O jovem escritor Dedalus é inteligente e conhecedor das mais diversas disciplinas. Por isso, a sua fala e descrições tendem a serem mais profundas e com o uso de palavras mais rebuscadas. Por outro lado, a mente do comum Bloom caminha pelo que é prático e visível, sem grandes reflexões, mas perspicazes a sua própria maneira. 

Bloom é um herói de uma tragédia, ele compreende que não pode fugir de seu fantasma e nêmesis que, mesmo sem se apresentar ativamente, mostra suas garras e maldições na fala dos personagens da obra. Maltratado pelos secundários que sabem da infidelidade de Marion, de sua posição social por sua descendência húngara-judaica em uma Irlanda nacionalista com traços de xenofobia, personificada na figura do grotesco “ciclope”, que dispara suas falas monoculares contra Bloom.

A fuga

Sua fuga de Marion é também uma fuga das lembranças da morte prematura do jovem Rudy, o seu Telêmaco, que mesmo após anos ainda o machuca profundamente, como vemos em vários curtos monólogos sobre o estado atual da sua vida.

Dedalus, nosso príncipe Hamlet de Joyce, e também protagonista do livro Retrato do Artista quando Jovem, desdobra-se sobre a dor da perda da mãe. Em seu momento mais agonizante, se recusou a se prostrar e rezar pela sua alma. Ele, homem inteligente, tenta racionalizar seus sentimentos, mas nós, os leitores, sabemos que está fugindo de enfrentar seus demônios. 

Como Freud nos lembra — Joyce era leitor de Freud —, é impossível fugirmos dos demônios que guardamos no nosso inconsciente. Todos eles crescem e se acumulam em nossos personagens no glorioso capítulo quinze, apelidado de Circe. Com efeito, é neste ponto onde o álcool e o sexo acentuam-se para revelar as covardias, os males, os vícios e as perversões de nossos protagonistas assombrados por todos. O erótico se mistura a arte, um se torna dependente diretamente do outro. 

Antagonistas e anti-heróis em Ulysses

“Quem são os nêmesis dos nossos protagonistas afinal? Além disso, por qual motivo estes lhes causam tanto sofrimento?”

Certamente que a maior nêmese da obra, como é fácil constatar nesta resenha de Ulysses, é a Marion Bloom, isso não há discussão. De fato, ela é uma personagem que participa e não participa da obra. Portanto, pouquíssimas vezes a vemos — somente em três capítulos. Mesmo assim, ela só assume o protagonismo da fala no último. Entretanto, a sua presença está na ausência, nas falas dos personagens que se contradizem.

Homero termina a sua Odisseia em Odisseu. Contudo, Joyce termina a sua Odisseia em Molly Bloom, mulher tão inteligente quanto Dedalus e tão perspicaz quanto seu Odisseu, que não abandona a sua sensualidade avassaladora. Uma adúltera, assumidamente adúltera, capaz de nos causar um rebuliço de sentimentos para, por fim, compreender a sua situação como mulher e membro da família Bloom.

Conclusão da resenha de Ulysses

Não devo me prolongar mais nesta resenha de Ulysses. Ainda que seja um grande clássico, ou talvez por isso, Ulysses é uma leitura desafiadora, mas que é capaz de gratificar imensamente aquele que estiver disposto a enfrentar tamanha Odisseia.

Leopold é um homem divertido que nos faz apaixonar por tamanha docilidade que há em sua personalidade. Nesse sentido, ficamos tristes ao final da obra, por ter que nos despedir de um personagem tão carismático que até ganhou seu dia especial. No Bloom’s Day, 16 de junho, os irlandeses bebem em homenagem a James Joyce, o maior escritor do século XX. 

Dessa forma, se tiver disposição para enfrentar um desafio completamente novo que irá te retribuir imensamente, te proponho Ulysses, do irlandês James Joyce.

E tapa-olhos são legais.

“Toda vida é muitos dias, dia após dia. Caminhamos por nós mesmos, encontrando ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, rapazes, esposas, viúvas, bons cunhados. Mas sempre encontrando a nós mesmos.”

James Joyce

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