Hannah Gadsby se revela por completo em Ten Steps to Nanette

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‘Ten Steps to Nanette’ de Hannah Gadsby, é uma daquelas autobiografias que nos destrói por dentro e reconstrói aos poucos, acompanhando a vida de uma pessoal real, com dificuldades e traumas que muitos de nós também vivemos.

O livro começa com um alerta de gatilho, infelizmente muito necessário. Pessoas que sofreram violência sexual, problemas de saúde mental ou têm uma orientação sexual fora do padrão cis gênero podem sentir abalos pelo conteúdo do livro em diversas passagens. O alerta fica aqui também.

E, embora eu tenha a tendência a dar risada quando conto uma história, fica o aviso que algumas coisas horríveis aconteceram comigo, e algumas de minhas histórias podem muito bem te abalar. Elas certamente me abalaram. 

Gadsby, Hannah. Ten Steps to Nanette: A Memoir Situation (p. 10). Atlantic Books. Edição do Kindle.

Apesar do peso do conteúdo em diversas partes da história, a autobiografia de Hannah Gadsby me encantou. Tanto pela escrita em ritmo rápido, certeiro, quanto pela superação e amadurecimento da autora.

Hannah Gadsby alcançou o estrelato mundial quando lançou seu especial de comédia na Netflix, chamado Nanette. Daí o nome do livro, que reconstrói toda a história da autora até esse fatídico show, conhecido por muitos como o momento em que ela “desistiu da comédia”.

A desistência não é tanto da carreira de comediante de Hannah, que começou por volta de 2009, quando ela percebeu que era engraçada para muitos. Mas sim da comédia auto-depreciativa, que expõe as dores de quem se apresenta no palco de forma menos brutal com o único intuito de provocar o riso.

As pessoas começaram a me dizer que eu tinha “talento” para a comédia desde o momento em que deixei o palco após meu primeiro show. A coisa mais incrível era que eu sabia que estavam certos. Nem uma única vez, durante todos os meus vinte e sete anos de vida antes da minha estreia na comédia, eu tive tanta confiança em minhas próprias habilidades.

Gadsby, Hannah. Ten Steps to Nanette: A Memoir Situation (p. 196). Atlantic Books. Edição do Kindle. 

Machismo e homofobia

Em seu especial na Netflix, Hannah relaciona a autodepreciação com diversas estruturas sociais que reinam no mundo da comédia e no mundo real. Machismo e homofobia ainda estão em voga e não é possível negar essa realidade.

No livro, a história de Hannah é contada em paralelo à história da legislação contra os homoafetivos na Tasmânia, uma ilha ao sul da Austrália que faz parte do território deste país.

Suas primeiras memórias, seus anos na escola, a dificuldade em se encaixar e de fazer amigos, são costuradas com eventos políticos que aconteciam neste momento. A luta dos grupos pró-LGBT, protestos diversos e a avaliação que a Tasmânia é o território australiano mais atrasado nestes quesitos.

Sua família também aparece em detalhes e aprendemos como o humor de sua mãe e de sua avó foram essenciais para formar a comédia de Gadsby. Seus irmãos, muitos, e a tranquilidade de seu pai, são elementos que ajudam a construir a própria personalidade da comediante.

E quando ela chega na escola e sofre bullying, ou os episódios de abuso sexual na infância, isso se apresenta de forma tão robusta e simples. Esses fatos se alinham à realidade de seu país e da sua família, por isso, quase desejamos poder abraçar a autora.

Certamente que tudo isso impactou Hannah, que cresceu acreditando que ser gay era como ser uma criatura distinta em um mundo homogêneo. Isso contribuiu com a forma que a comediante via a si mesma, tanto que foi capaz de se aceitar somente após sair da sua terra natal para estudar.

De todos na minha família, a pessoa com quem eu mais parecia era a minha avó. Eu compartilhava muito do seu jeito, a mistura incongruente de ambiguidade e inteligência. Meu senso de humor era muito parecido com o dela também, variando, por assim dizer, de bobo e ridículo a negro e muito seco, muitas vezes no mesmo fôlego.

Gadsby, Hannah. Ten Steps to Nanette: A Memoir Situation (p. 287). Atlantic Books. Edição do Kindle. 

Hannah Gadsby, uma história de sofrimento

O sofrimento de Gadsby não para por aí e segue capítulo por capítulo. Uma verdadeira história de superação, para aprender lições. Mas a forma com que ela apresenta todas as situações não deixa o leitor acreditar que ela seja vítima. Talvez pelo fato da escrita fechar sempre com um tom de comédia. Não auto-depreciativa, pois fica claro para todos que a culpa por tudo o que aconteceu não é dela. Mas uma comédia sincera, vulnerável, muitas vezes política e de total abertura com o leitor.

Como em toda autobiografia, não lemos para saber o final, mas sim o meio e o começo. De onde ela veio, como chegou ao diagnóstico de autismo e que percalços teve que viver para chegar ao ponto onde está.

‘Ten Steps to Nanette’ foi um dos poucos livros que li sem poder largar. Como resultado, achei incrível perceber que o que torna Hannah Gadsby uma comediante tão bem-sucedida é justamente a forma dela construir a narrativa, que aparece de forma brilhante no livro.

Aliás, é também um dos livros que mais me permitiu me colocar nos pés de outra pessoa. Ainda que em uma realidade tão distante, mas com quem é fácil se identificar. Todos sofremos, em maior ou menor grau, com a maldade alheia. Transformar esse sofrimento em material para comédia existe um certo distanciamento da própria realidade.

O passado molda o futuro

Contudo, se isso é saudável ou não, cabe ao sofredor decidir. Assim, Gadsby trabalha estas descobertas em seu livro, mostrando o que muitos de nós já sabemos inconscientemente. Que, de fato, nosso passado molda o nosso futuro, mas todos podemos escolher até que ponto permitimos que isso aconteça.

O objetivo era quase dizer algo profundo, e no espaço entre as palavras ditas e o significado ao qual eu não cheguei, outras pessoas poderiam ser capazes de transformá-lo em algo que estavam procurando. É um pequeno truque que aprendi com Tony Robbins, exceto que deixei de fora seu complexo de messias e sua retórica de culpar as vítimas, e as substituí pela fé que as pessoas são capazes de encontrar seus próprios significados.

Gadsby, Hannah. Ten Steps to Nanette: A Memoir Situation (p. 355). Atlantic Books. Edição do Kindle.

Por enquanto, só é possível comprar ‘Ten Steps to Nanette’ em inglês e alemão, mas, com toda a certeza terá tradução e publicação em breve no Brasil. Apesar disso, o livro é fácil de ler — mesmo com o vocabulário australiano da autora.

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