‘O músico cego’, de Vladimir Korolenko, em tradução magistral

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Por Mariana Eberhard

Eu comecei a ler O músico cego por ossos do ofício, pois traduzi um capítulo para o trabalho e me encantei pela narrativa. De fato, tenho que admitir que essa foi minha introdução à literatura russa, que dá razão à fama, mas começar por um escritor praticamente desconhecido no Brasil me mostrou outro lado dessa terra de gigantes.

Editado pela Carambaia e publicado em 2021, com tradução magistral de Klara Gourianova, O músico cego é uma das obras mais importantes de Vladimir Korolenko, nascido na atual Ucrânia. Korolenko foi jornalista, contista e ativista dos direitos humanos, tendo sido preso na Sibéria em 1879 – fato que influenciou o seu radicalismo idealista.

Nascido de pai russo e mãe polonesa Jitómir, Korolenko se tornou leitura obrigatória nas escolas da Rússia e é considerado por muitos um dos titãs da literatura daquele país. 

O leitor pode se confundir pela tradução, que traz o termo ucraniano repetidamente para tratar da cultura, da região e da música. A escolha da tradutora, que percebi diferir da tradução inglesa, é muito útil para deixar claro para o leitor a localização geográfica onde a história acontece.

Em tempos de guerra entre os dois países (que ainda não havia começado na época da publicação do livro), traçar a linha imaginária entre a Rússia e a Ucrânia por meio das palavras me parece uma forma de honrar a independência do povo ucraniano.

A história do músico cego

O livro começa de uma forma muito simples:

A criança nasceu à meia-noite numa família rica que morava na região sudoeste. A jovem mãe estava desfalecida, mas, quando soou o primeiro grito baixo e lamentoso do recém-nascido, ela se agitou na cama sem abrir os olhos.

Korolenko, Vladimir. O músico cego (p. 3). Carambaia. Edição do Kindle. 

A criança em questão é Piótr Popélski, garoto que nasceu sem enxergar e que, como você deve imaginar, se tornará o músico cego. O caminho até lá, no entanto, é conduzido com primor por Korolenko.

Piótr é ensinado em casa pelo tio Maksim, que parece ser uma alegoria à masculinidade daquele tempo e lugar. Maksim lutou na guerra, anda com uma bengala e está sempre envolto na nuvem da fumaça de seus cigarros. Contudo, sua aparência, descrita muitas vezes como assustadora, esconde um coração amaciado pelas agruras da vida. O tio toma repetidamente o lugar de figura paterna para o menino, cujo pai é ausente na vida e nas entrelinhas da obra.

Conhecendo a flauta

A mãe Anna, sempre preocupada com o futuro de seu filho, é a responsável por protegê-lo em todos os momentos. Nesse sentido, sua preocupação é aguçada quando Piótr se encanta pela flauta ucraniana, tocada pelo mujique Iókhim. Aliás, o trecho que trata da flauta, intitulado ‘Sentimento Musical’ na versão inglesa, é uma das partes mais interessantes do livro.

Ao ouvir Iókhim tocar todas as noites na cocheira para sarar o coração partido, nasce a paixão do menino pela música, encontrando nas notas da flauta, e depois do piano, uma forma de compreender as imagens que seus olhos eram incapazes de enxergar.

Desse modo, como nos conta Elena Vássina no melhor prólogo que já li na vida, O músico cego foi chamado de novela-pesquisa, se debruçando na vida interior de um menino que nunca viu a luz e sofre por seu terrível destino. No entanto, ao acompanharmos a sua história desde o nascimento, compreendemos que é necessário para o conflito central do menino (e da obra) que sua existência seja permeada de choques de realidade inerentes à sua condição.

Obra datada

O cego também cresceu e tornou-se homem. Qualquer um que olhasse para ele naquele momento o veria sentado a certa distância do grupo, pálido, emocionado e bonito, e logo repararia nesse rosto incomum, no qual se refletiam todos os seus sentimentos.

Korolenko, Vladimir. O músico cego (p. 54). Carambaia. Edição do Kindle.

Em minha pesquisa para escrever essa resenha, encontrei uma avaliação no Goodreads afirmando que O músico cego é uma obra “datada”. Bem, toda obra é datada, ainda mais quando o livro em questão foi lançado em 1886. No entanto, acredito que meu incômodo com essa avaliação vem da minha opinião sobre a obra. Com efeito, poucas vezes li um livro tão universal, mesmo entendendo seu contexto histórico e social, e que tratasse de forma tão delicada um assunto que a maioria das pessoas prefere ignorar.

Assim, esse é o tratamento da sociedade às pessoas com deficiência visual ou portadoras de qualquer outra deficiência física. Por fim, um livro que nos permite encarar a rica vida interior de um menino que aprende a enxergar o mundo através da música nunca será datado.

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