Como a literatura vem matando o mito da mãe perfeita (e porque os livros sobre maternidade real são ótimos)

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Conheça alguns livros sobre maternidade da nova geração, que desafiam os conceitos mais arraigados nos processos e vivências do “ser mãe”.

Uma das coisas que eu mais amo na vida é ver um bebezinho, que já nem é mais tão “inho” assim, aprendendo a caminhar. Os livros sobre maternidade falam muito disso. Aqueles passos cambaleantes, cheios de quantias iguais de coragem e receio, me dão uma certa esperança na vida. Mas o que eu mais gosto mesmo é buscar nos arredores deste bebê um par de progenitores preocupados, atentos e completamente apaixonados por essa criatura.

É possível ler nos olhos destes pais que eles acreditam piamente que este ser é a coisa mais linda que o universo já criou. Neste momento, eu tenho a convicção que esse bebê é amado, coisa que muitas crianças neste mundo nunca experimentarão na vida, pois, há mais descaso e abuso do que seria aceitável em qualquer nível de racionalização.

No entanto, nas minhas leituras nos últimos anos, percebi haver uma leva grande de mulheres obstinadas a assassinar a facadas o mito da mãe perfeita. É fácil encontrar essas mulheres nas redes sociais e ainda mais fácil encontrá-las nas prateleiras de livrarias mundo afora. O mais interessante para mim, é que, indo contra todas as velhas convicções sobre a maternidade, estas mulheres não estão tentando abrir a pauladas a possibilidade de abusarem de suas crias. Muito pelo contrário, o que elas querem dizer é que sem apoio em uma sociedade cada vez mais voltada para o sucesso individual, não dá para criar esses filhos com todo o amor que eles merecem.

Para além dos diversos manuais voltados para as mães de primeira viagem, as autobiografias de puérperas e os livros sobre maternidade real, há uma boa leva de mães que decide mostrar, usando o universo complexo que só a ficção nos permite criar, que ser mãe é difícil, pesado e, às vezes, desesperador. Criar um ser humano do zero é uma tarefa que ninguém deveria enfrentar sozinho, mas sabemos que a maioria das pessoas nesta condição são mulheres e que mesmo mulheres com paceiros(as) precisam às vezes cuidar de tudo sem muita ajuda. Tudo isso piora se nos sentirmos fora do padrão “mãe perfeita”.

O Impulso

Entre os livros sobre maternidade que causaram mais burburinho nos últimos anos está O Impulso, de Ashley Audrain (Companhia das Letras, 2021). Nele, uma mãe descobre que a maternidade não é nada do que ela esperava e que talvez sua filha não seja quem ela imagina. Um thriller maravilhosamente escrito, com personagens cheios de nuances complicadas, sem heróis nem vilões, e um final digno de filme.

O que me chamou a atenção neste livro é a facilidade com que eu, como mãe, pude me identificar com as dores da maternidade. Mesmo as mais feias, aquelas que não admitimos a estranhos, que fazem a gente achar que está sozinha neste mundo que não foi feito para crianças. A história de Blythe Connor foi elevada para fins dramáticos, sendo tão aterrorizante quanto poderia ser verdadeira.

A Filha Perdida

Na esteira de O Impulso, acabei lendo A Filha Perdida, de Elena Ferrante (Intrínseca, 2016), antes de assistir ao filme recém-lançado na Netflix. Outra história que explora o lado desesperador da maternidade, este livro também não tem vilões nem mocinhos, sendo digno de um debate em uma mesa de bar para decidir se a personagem principal, Leda, é uma boa mãe ou não, ou se ela bate mal ou bem da cabeça.

A metáfora da filha perdida pode ser revertida diretamente para a metáfora da mãe perdida e essas são muitas. Basta ter uma conversa de 30 minutos com qualquer mãe que você verá que a maioria é como aquele meme do cachorro tocando teclado: “eu não tenho ideia do que estou fazendo”.

Mother Is a Verb: An Unconventional History

Reza a lenda da mãe perfeita que as nossas avós, essas, sim, sabiam o que estavam fazendo. Alguns chegariam ao ponto de dizer que essa história de maternidade real é mimimi, pois as mães deles criaram (inserir aqui o número de filhos) sem ajuda de ninguém, enquanto o pai provia o pão, mas não sacudia o bebê que chorava.

Isso, é claro, não é verdade. Prova disso é o livro maravilhoso da Sarah Knott: Mother Is a Verb: An Unconventional History (Sarah Crichton Books, 2019). Apesar de ser focado no mundo anglo-saxão e não ter sido ainda traduzido para o português, este apanhado da história da maternidade nos últimos 300 anos mostra que a mãe perfeita nunca existiu. Eu arriscaria ainda dizer que o livro prova que se esta mãe de fato existe, nunca estivemos tão perto de alcançá-la.

Nesta obra-prima da não-ficção, vários mitos são derrubados, como a amamentação. As mães têm dado mamadeira para seus bebês há muito mais tempo do que o leite em pó foi inventado, e as mães das classes mais abastadas tinham amas de leite para fazer este trabalho. Grupos de mulheres se apoiando e tirando dúvidas sempre foi normal, até porque quando temos o primeiro filho, nunca sabemos o quanto de choro é… bem, normal.

Sobrecarregados: Trabalho, amor e lazer quando ninguém tem tempo

Desmistificar a maternidade usando documentos históricos parece a prova cabal que precisávamos, mesmo sem saber, mas há outras ciências além da história trabalhando no assunto. No livro Sobrecarregados: Trabalho, amor e lazer quando ninguém tem tempo (Figurati, 2017), a jornalista Brigid Schulte explora por meio de entrevistas com mães e especialistas como as mães norte-americanas estão prestes a desenvolver síndrome de burnout da maternidade.

A questão é o tempo, que anda tão escasso a ponto de parecer que a Terra vem rodando mais rápido, ou são as inúmeras atividades que queremos enfiar neste mesmo tempo? Bom, se você entende de física (ou da vida de qualquer mãe), sabe que o último é o verdadeiro.

Para mim, o trecho que mais me marcou neste livro foi a visita que a autora fez a pais escandinavos, os mais felizes do mundo, para entender por que eles não estavam entrando em desespero com a vida. A fórmula não tem nada de mágica, mas sim envolve planejamento parental e muito apoio do governo. Nos países onde as mulheres têm a segurança de que não faltará comida no prato, que o emprego está garantido mesmo com a gravidez, que a creche é de qualidade e que o empregador sabe o que significa work-life balance, elas são mais felizes.

Em comparação aos Estados Unidos, cita a autora, os escandinavos ainda têm a vantagem de viverem em uma sociedade que não vive e respira o sucesso individual. Nestes lugares, criança nenhuma precisa ter aulas de mandarim a partir dos três anos da idade. Eu sei que o Brasil se encaixa em algum lugar neste meio, pois ainda temos um relativo apoio da família em comparação aos países mais desenvolvidos, mas não temos a segurança do Estado.

Mutter to go: Zwischen Baby und Beruf

Mas não precisa fazer as malas e emigrar para a Europa para viver o sonho da maternidade perfeita. Isso é o que mostra o livro da alemã Sabine Rennefanz: Mutter to go: Zwischen Baby und Beruf (btb Verlag, 2019). A jornalista mostra em uma série de artigos, publicados originalmente em sua coluna no Berliner Zeitung, que nada poderia prepará-la para a maternidade e para as diversas facetas que uma mãe desenvolve após ter filhos: o ser mulher, mãe, profissional.

Isso tudo mesmo com todo o apoio do sistema social alemão, que garante até três anos de licença parental, dividida entre progenitores ou pais adotivos como quiserem, com uma renda máxima de até 1.800 EUR por mês, calculada com base nos ganhos dos últimos 12 meses. 

As mães alemãs estão cansadas. Após anos de feminismo ferrenho, especialmente no lado oriental do país, onde as mulheres alcançaram liberdades e posições de liderança como em poucos países desenvolvidos, as mães se vêm correndo atrás de vários ideais: ser a trabalhadora perfeita, a esposa companheira e a mãe sem defeitos. É como correr uma maratona com três linhas de chegadas e cada uma fica exatamente a 40 km da outra — na prática, são então três maratonas.

Sabine explica com fatos o que Ferrante e Audrain personificaram em suas ficções: às vezes, as mães têm vontade de sumir, mesmo amando seus filhos mais do que tudo neste mundo. Mudanças em instituições sociais como a maternidade só podem ocorrer coletivamente, seja para o bem ou para o mau. Se há toda uma geração de mães cansadas, fartas de tentarem criar um comercial de margarina quando não tomam banho há dias e dormem muito pouco, há um problema social.

E viva os livros sobre maternidade real…

O fato da maternidade na literatura ter mudado tanto nestas últimas décadas é indício que as mulheres, honrando o Zeitgeist do feminismo e da emancipação, estão usando o amplificador midiático de suas redes sociais, livros, séries e filmes para dizer muita coisa. Basta ouvirmos e, se der tempo, perguntar-lhes que soluções poderíamos encontrar para estes problemas.

Talvez seja mais apoio do marido/esposa, da família, do Estado, das instituições de ensino ou daquele bom e velho grupo de amigas. Ou quem sabe direitos maiores e mais amplos — não precisamos inventar a roda, é só copiar as estratégias dos países com Estados de Bem-estar Social melhor estabelecidos. Mais interessante talvez seja escutar as mães sem julgamento, levantando o véu da maternidade perfeita e tirando a carapuça da maternidade real.

Os melhores livros sobre maternidade, sejam eles feitos de fatos ou histórias, revisitam o desespero da maternidade e podem prover um pouco de calma. Aliás, só em saber que não estamos sozinhas, que há uma legião de mulheres sofrendo a mesma pressão, poderemos construir coletivamente uma sociedade onde a mãe perfeita morra em paz, deixando apenas a mãe que existe de fato.

Mas mesmo dizendo todas essas coisas, eu não acredito que exista forma melhor de terminar este texto do que uma poesia da maravilhosa Rupi Kaur:

our backs

tell stories

no books have

the spine to

carry

women of color – Rupi Kaur

nossas costas/contam histórias/que nenhum livro/tem a espinha/para carregar…

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